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Enxergar a materialidade para agir no mundo: o Egito antigo no III Curso de Formação de Mediadores do Museu Nacional

Hoje demos vida às peças egípcias em exposição no Museu Nacional do Brasil – essa foi a impressão que os alunos do III Curso de Formação de Mediadores promovido pela Seção de Assistência ao Ensino fizeram questão de registrar. O objetivo da aula sobre o Egito antigo ministrada por mim hoje para os mediadores bolsistas de graduação e os alunos do Colégio Pedro II – a estes, minha especial admiração – não foi somente contar a história do Egito antigo mais uma vez, mas sim trazer essa história, através da cultura material, para o presente, refletindo criticamente sobre as contribuições que o Egito antigo pode dar a quem visita o Museu Nacional.

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Comecei contando um caso que vivi recentemente. Costumo visitar às vezes a sala egípcia para ver as peças, refletir sobre diversas coisas e ouvir as pessoas que por lá passam. Certa vez uma moça que aparentava ser de origem humilde junto com uma criança chegou perto do caixão com a múmia de Sha-Amun-em-su. Aproximavam-se sem nenhuma familiaridade com aquilo tudo, então resolvi puxar assunto. Contei a história da vida de Sha-Amun-em-su para essa moça: ela tinha sido uma mulher que morreu há muito, muito tempo e que havia sido uma cantora. Imediatamente a reação da moça que visitava o Museu foi me dizer: “Não! É múmia!”

Isso me tocou profundamente. A cultura material é desumanizada: não há, por grande parte das pessoas que por ali passa diariamente, a consciência de que se trata de seres humanos, e que foram mulheres e homens como nós – apesar de tão diferentes – que produziram aqueles maravilhosos objetos, lindíssimas expressões de humanidade, de crenças e práticas bastante peculiares.

Disse aos futuros mediadores do Museu Nacional que a maior tarefa que eles têm é a de humanizar as exposições. Somente dessa forma, sensíveis às diferenças e imensa variedade da experiência humana, no passado remoto e nos dias de hoje, é que as pessoas vão poder, por si só, também “dar vida” àquelas peças em exposição.

O Egito antigo, assim como todas as outras exposições do Museu Nacional, tem o enorme potencial de fazer com que todos percebam o mundo em que estamos inseridos hoje, através do olhar. A maior tarefa do Museu é alfabetizar o olhar para que as pessoas se tornem conscientes da materialidade que nos rodeia a todo o instante. É nessa materialidade que nossa vida se desenrola; onde estão marcadas as relações sociais de desigualdade, de pluralidade. Nós somos parte dessa materialidade e podemos modificá-la: “Se podes olhar, vê, Se podes ver, repara”, já disse José Saramago. Repara, ele nos diz, não somente no sentido de perceber, mas sim de consertar. Só podemos consertar o que conhecemos, e para conhecermos, precisamos estar conscientes do que somos em relação ao outro – diferente, porém absolutamente encantador.

Abordar a cultura material presente na exposição egípcia dessa forma muda completamente o sentido das coisas. De exóticas, estranhas, monstruosas (as múmias), as coisas tornam-se parte da nossa vida, ajudam a criar identidade e a noção de que, por mais que as coisas pareçam não mudar, estão em constante processo de modificação. O Egito antigo é um ótimo laboratório para desenvolver nas pessoas essa noção: uma cultura que durou por milênios aparentemente estática aos olhos destreinados, foi criativa, inovadora, altamente dinâmica e plural. E, sendo assim, produziu monumentos maravilhosos que hoje são patrimônio da humanidade, registro da grandiosa experiência humana no passado.

Os mediadores do Museu Nacional devem explorar esse potencial tendo a consciência plena de que podem – e devem – ver para reparar, através do exercício crítico e da percepção da materialidade das coisas, que mudam, que são históricas e possíveis de serem modificadas. A explicação dos detalhes das peças é absolutamente crucial para a compreensão da alteridade e construção de identidade e senso crítico através da cultura material, mas não deve se tornar o objetivo principal da mediação. O objetivo é chegar às pessoas; torná-las conscientes de que tudo está em mudança, de que o diferente deve ser valorizado, porque todos somos seres humanos e experimentamos o mundo de formas variadas.

Gostaria de agradecer a todos que participaram como alunos e aos organizadores pela oportunidade de aprender um pouco mais a enxergar – e reparar!